Povos da Amazônia lançam Carta em defesa da agroecologia e do Bem Viver
Por Élida Galvão
Fundo Dema
I A primeira Caravana Agroecológica do Oeste do Pará reuniu mais de 150 pessoas ao longo do percurso
Percorrendo seis municípios das regiões da Transamazônica/Xingu e BR 163, a I Caravana Agroecológica do Oeste do Pará anunciou a importância da agroecologia no campo e na cidade, envolvendo de conhecimentos, experimentos em diversas realidades e muito diálogo. Precedendo os Encontros Regional e Nacional de Agroecologia, a iniciativa envolveu o debate central à questão da justiça social, ambiental, cultural e econômica, provocando reflexões sobre as injustiças causadas pelo avanço do agronegócio e por projetos de infraestrutura que destroem o meio ambiente e os modos de vidas das populações locais.
Organizada Fundo Dema em parceria com a Fundação Ford e com o apoio da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Caravana ocorreu no período de 29 de janeiro a 02 de fevereiro, partindo da cidade de Altamira, com cerca de 70 pessoas, rumo aos municípios de Brasil Novo, Medicilândia, Uruará, Placas e Rurópolis. Na abertura do evento, o Comitê Gestor lançou o Edital Agroecologia, Segurança Alimentar e Defesa dos Bens Comuns voltado à consolidação de projetos comunitários já apoiados pelo Fundo. O momento também lembrou de Seu Cido, um agricultor familiar de Brasil Novo, falecido em 2015, que lutava pela vivência agroecológica na Amazônia. Ele integrava o projeto ‘Sítio Agroecológico’, apoiado pelo Fundo Dema, voltado ao manejo agroflorestal de área disponibilizada para ações de intercâmbio, estudos e propagação da prática agroecológica.
Além de intercambiar trocas de experiências, a Caravana também anunciou o Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), que ocorre no período de 31 de maio a 03 de junho, na cidade de Belo Horizonte (MG), e o Encontro Regional de Agroecologia (ERA), a ocorrer em abril, na região metropolitana de Belém. Contando com a presença de Letícia Tura e Fábio Tijupá, ambos à frente da coordenação da ANA, a atividade foi um momento propício para intensificar o diálogo com a população sobre o combate aos agrotóxicos e as ameaças do agronegócio. “Com o Tema ‘Agroecologia e democracia unindo o campo e a cidade’, no IV ENA queremos trazer um debate não só sobre práticas agroecológicas, mas também, dentro desse cenário conjuntural que estamos vivemos queremos fortalecer a democracia em nosso país, para que tenhamos dias melhores e construir outras ideias, fortalecer a sociedade no campo e na cidade”, disse Fábio.
Representando o Movimento Xingu Vivo, Antônia Melo da Silva destacou a contribuição da caravana para a defesa do território. Para a militante, uma das lideranças na luta contra as barragens de Belo Monte, este foi um momento para dialogar com a população sobre a valorização de suas formas tradicionais de vida. “As pessoas perderam o seu território, perderam o seu modo de vida, perderam praticamente a sua identidade. Esses projetos chamados de grandes não têm nada de grandes porque só trazem destruição para os pequenos. O que é grande pra nós da Amazônia, do Xingu é aquilo que dá produção, satisfação, alegria, que dá vida com dignidade”, pontuou.
Agroecologia na Amazônia
No segundo dia de atividade, após mística de trocas de sementes, Vânia Carvalho, educadora do Fundo Dema, enfatizou a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e falou sobre a importância de produzir e consumir alimentos sem veneno para garantir uma alimentação saudável e nutritiva à população.
Em seguida, o comboio partiu para o município de Brasil Novo, onde foram apresentadas diversas experiências agroecológicas apoiadas pelo Fundo Dema, entre elas a da rádio comunitária Popular FM, que, por meio de programas de rádio educativos, leva aos agricultores familiares, ribeirinhos, indígenas, quilombolas e pescadores informações sobre temas voltados ao cuidado qualidade de vida e o cuidado com o meio ambiente, como a agroecologia, a segurança alimentar e nutricional, entre outros.
I Em Medicilândia, seu Pedro explica como planta cacau nativo em sistema cabruca, sem queima e nem derrubada
A importância da educação no campo foi um dos assuntos destacados. Em depoimento, integrantes da Casa Familiar Rural de Brasil compartilharam suas práticas orgânicas voltadas ao fortalecimento da agroecologia e da agricultura familiar. “Nós mostramos aos agricultores de Brasil Novo que é possível produzir sem derrubar, sem queimar, e que é possível recuperar as áreas degradadas. Hoje nós temos uma produção bem significante de produção agrícola. Com isso conseguimos, também, diminuir o êxodo rural (…). Antes os agricultores não tinham incentivo para vender seus produtos. Hoje produzem de forma agroecológica, sem veneno, para a alimentação da família e acabam por vender o excedente”, relata Cleid Suk.
Experiências agroecológicas em áreas de cultivo também foram vivenciadas pelos participantes da Caravana, a exemplo da plantação de cacau em sistema cabruca, em Medicilândia. Em um terreno de 16 hectares, 16 famílias trabalham coletivamente com plantação de cacau nativo sem queima, respeitando a biodiversidade da floresta. “Esse cacau não precisa fazer correção no solo. Com uma lavoura nesse grau de umidade, quando chega o verão não tem necessidade de controle de pragas. A própria natureza tem nos ensinado”, diz o agricultor Pedro Lima.
Grande parte do cacau que é produzido pelas famílias agricultoras destina-se a produção de chocolate na fábrica Cacaway, da Cooperativa Agroindustrial da Transamazônica, que também recebeu a visita do grupo. “Temos total acordo com a produção do cacau sem queima, buscamos uma alternativa para fazer roça sem fogo. O cacau na Amazônia consegue ser colocado dentro de uma atividade que garante a sustentabilidade da agricultura familiar, gerando emprego e renda de forma harmoniosa com a natureza”, considera Tarcísio Venturim, sócio da cooperativa.
Sem feminismo não há agroecologia
Durante o percurso da Caravana o protagonismo das mulheres se mostrou forte e evidente no processo de fortalecimento da agroecologia. Enfatizando seus vínculos comunitários e a relação com a produção agrícola, as mulheres demonstraram a força de suas atuações na luta em defesa da agroecologia, da segurança alimentar e nutricional, na defesa do meio ambiente, do território e, principalmente, na luta contra o patriarcalismo e todos os tipos de violência.
Em Uruará, as experiências do Movimento de Mulheres de Uruará Campo e Cidade, da Associação de Mulheres Dom Oscar Romero e da Associação Agroextrativista Sementes da Floresta, se revelaram como exemplo da importância da mulher tanto nas atividades produtivas, quanto na conquista da autonomia. Integrando o projeto Sementes da Floresta, Selma Moreira explica que o plantio de essências florestais em áreas degradadas foi uma alternativa encontrada tanto para garantir a biodiversidade, quanto para o sustento familiar.
“Isso é um benefício social incomparável. Antes os agricultores achavam que se não tivessem grandes equipamentos para ampliar suas áreas de produção, fazer todo um processo mecanizado, eles iriam passar fome. Essa alternativa tem uma viabilidade agroecológica, de sustentabilidade ambiental e social porque restaura as áreas degradadas, gera produção de alimentos saudáveis porque não agrega agrotóxicos à produção alimentar, gera melhores condições de vida para o agricultor”, disse Selma.
Em Placas não foi diferente, o trabalho desenvolvido pelos projetos ‘Cuidando da Vida no Bioma Amazônico’ e ‘Alimentação Sadia, Vida Saudável e Cuidado com o Meio Ambiente’ ganharam notoriedade pela agregação da agroecologia ao cuidado com a vida a partir de uma visão holística. No município, as mulheres têm sido responsáveis por promover segurança alimentar e saúde à população.
I Mulheres lançam Edital de apoio a projetos coletivos nas regiões da Transamazônica e BR 163
Com o nome ‘Farmácia Viva’, o espaço de acolhimento coletivo coordenado por um grupo de mulheres, agentes da pastoral da saúde, tem contribuído na prevenção de doenças com tratamentos que integram diversas terapias, entre elas homeopatia e fitoterapia. “O nosso trabalho é com terapias integrativas. Por falta de políticas públicas em saúde, às vezes recebemos pessoas muito doentes. Essa semana chegou um senhor muito doente por trabalhar diretamente com o uso de agrotóxicos, mas infelizmente não temos como resolver doenças graves”, avalia Ir. Marialva, coordenadora do projeto.
Seguindo para Uruará, destino final da Caravana, as mulheres aproveitaram o momento para fazer o lançamento do III Edital do Fundo Luzia Dorothy do Espírito Santo (FLDES). Intitulado Mulheres: Fortalecimento da Agroecologia, com Autonomia, Empoderamento e Sem Violência, este Edital recebe um significado especial, pois ele marca a expansão do Fundo às regiões da Transamazônica e BR 163. Antes a sua atuação se dava somente na região do Baixo Amazonas.
Em uma intervenção ao final do encontro, a indígena Raquel Farias, da etnia Tupinambá, firmou a necessidade de ocupar as redes sociais, as mídias populares, fazer parcerias com escolas e igrejas para denunciar o agronegócio, a violência contra as mulheres. “A gente não pode mais se calar. Precisamos usar todos os meios de resistência. Todos nós precisamos do nosso território pra plantar, pra sobreviver, pra manter a nossa vida em harmonia com a natureza. Hoje a gente não pode só vive no caminho do capitalismo porque as consequências estão aí. É grilagem, é a violência contra as mulheres, as nossas crianças adoecem”.
Carta do Bem Viver
Ao fim da Caravana, os participantes produziram uma carta em defesa do Bem Viver, resultado das reflexões coletivas feitas durante as experiências vivenciadas. Além de denunciar a pressão do capital financeiro sobre os povos e comunidades tradicionais, a violação de direitos e a exploração dos recursos existentes na Amazônia, o documento apresenta propostas a serem consideradas na luta em defesa da Amazônia e de seus povos. Leia abaixo o que diz a carta.
CARTA DO BEM VIVER
I CARAVANA AGROECOLÓGICA DO OESTE DO PARÁ
A região Oeste do Pará continua no centro do avanço do agronegócio na Amazônia, que devasta as florestas, dizima formas de vida, polui as águas, impactando aldeias indígenas, territórios quilombolas, assentamentos rurais, reservas extrativistas, trazendo a morte e a desesperança. Muitos são os problemas a se enfrentar no território com a instalação de grandes obras de infraestrutura, para alimentar grandes empresas e escoar a produção de monoculturas e bois do agronegócio, como a hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu, portos no rio Tapajós, bem como grandes mineradoras e madeireiras ilegais, que estão se implantando na região sem a devida discussão pública e, inclusive, com violação de direitos constitucionais, como a não realização de consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais. Trata-se de um modelo de desenvolvimento para região que vem sendo imposto pelo poder central do país e pelo capital financeiro globalizado, ignorando, assim, o direito das populações locais de decidir suas próprias formas de desenvolver a região. Como resultado, a região sofre com o auge do desmatamento e crescimento vertiginoso da violência contra lideranças comunitárias, contra as mulheres e no meio urbano, além da divisão dos movimentos sociais que gera o enfraquecimento das lutas pelo bem comum, pela diminuição da desigualdade socioeconômica, pelo respeito à diversidade social, cultural e ambiental.
Neste contexto, a I CARAVANA AGROECOLÓGICA DO OESTE DO PARÁ percorreu, entre os dias 29 de janeiro e 02 de fevereiro de 2018, 350 km entre as rodovias Transamazônica e BR 163, nos municípios de Altamira, Brasil Novo, Medicilândia, Uruará, Placas e Rurópolis, envolvendo 150 pessoas da região, visitando iniciativas coletivas, apoiadas pelo Fundo Dema, de recuperação de áreas desmatadas, de matas ciliares, de promoção da segurança alimentar e nutricional com produção de alimentos agroecológicos e saudáveis, diversificação dos cultivos, implantação de agroindústrias comunitárias de processamento de frutas, acesso ao mercado local e promoção da saúde integral.
Essas iniciativas são desenvolvidas por grupos de agricultores/as familiares, agroextrativistas, povos indígenas, comunidades quilombolas, grupos de mulheres, pastorais sociais, jovens de Casas Familiares Rurais, socioambientalistas e comunicadores/as populares. Apesar das dificuldades enfrentadas (como infraestrutura precária, carência de assistência técnica, falta de apoio do poder público, inadequação das modalidades de financiamento, obstáculos para regularização fiscal e sanitária etc.), tais iniciativas agroecológicas alimentam a resistência das organizações dessas regiões, que se expressam nos depoimentos abaixo:
“Eu me sinto fazendo o dever de casa, a natureza nos ensina, eles querem derrubar a s matas para o cacau se recompor, mas o cacau sozinho não compõe uma floresta” (Pedro Lima, km 80, Medicilândia, iniciativa de roça de cacau nativo agroecológico).
“Hoje as crianças das escolas de Uruará não consomem mais refrigerante, nem ki-suco. Hoje elas só consomem suco de polpas de frutas” (Shirlleyd Santos, projeto de beneficiamento de polpas de frutas, da Associação Dom Oscar Romero/AMDOR, em Uruará)
“As pessoas vêm para cá muito doentes. As doenças vêm do contato direto com o agrotóxico e da alimentação envenenada. Trabalhamos com terapia integrativa, com bioenergia, homeopatia para a saúde das pessoas, dos animais, do solo e da água, e com a Agroecologia” (irmã Marialva Costa, projeto de desenvolvimento da saúde integral com práticas agroecológicas de controle de pragas e descontaminação do solo e da água, da Comissão Verbita de Justiça e Paz, em Placas).
“Não aceitamos mais nada de fora, não precisamos. O que costumamos chamar de grandes projetos capitalistas não são grandes. Grande é o povo do Xingu!!” (Antônia Melo, do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, em Altamira).
- A defesa da Reforma Agrária, da demarcação de terras indígenas, dos direitos territoriais de comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares, deve ser central nas estratégias de promoção da agroecologia;
As experiências vividas e as rodas de conversas realizadas durante a Caravana reafirmaram o Fundo Dema como importante canal de troca de experiências e de fortalecimento mútuo das inúmeras organizações do movimento agroecológico do Oeste do Pará, contribuindo com as várias estratégias de resistências popular aos desafios enfrentados na região. Diante do que foi vivenciado durante o percurso da I CARAVANA AGROECOLÓGICA DO OESTE DO PARÁ, a comitiva afirma que:
- As mulheres são as guardiãs das sementes, do saber popular, da biodiversidade e promovem a agroecologia no Oeste do Pará de forma protagonista. Elas têm ainda um papel preponderante na promoção da alimentação saudável e no manejo das plantas medicinais e manipulação da homeopatia, a partir da valorização da biodiversidade;
- É necessário que estas iniciativas agroecológicas fortaleçam a luta de combate ao crescimento da violência contra a mulher na região. É importante afirmar que a violência contra a mulher destrói a agroecologia!
- É necessário fortalecer a construção de estratégias territoriais, para a construção social de mercados, principalmente locais e institucionais, com organização da produção e construção de relação com os consumidores;
- As Casas Familiares Rurais (CFRs) são espaços fundamentais de incentivo ao envolvimento da juventude nas iniciativas agroecológicas, mas carecem de apoios, por parte do Governo do Estado do Pará e das prefeituras municipais;
- É necessário ampliar o acesso das iniciativas agroecológicas da Amazônia às políticas públicas e políticas de financiamento que sejam estruturantes;
- As iniciativas agroecológicas do Oeste do Pará precisam se fortalecidas para romper com o seu isolamento e serem visibilizadas, no âmbito regional e nacional. Para tal, se mostrou fundamental o papel de sindicatos, pastorais, movimentos de mulheres, organizações sociais locais, articuladas em rede na construção de estratégias territoriais de Agroecologia;
- É fundamental fortalecer a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, tendo em vista a expansão crescente do uso de agrotóxico na região, com fortes impactos na saúde e no meio-ambiente, provocados, principalmente, pelo monocultivo da soja e na ‘limpeza’ dos plantios com os herbicidas;
- É necessário lutar pela democratização da comunicação e fortalecimento da comunicação popular para promover a articulação de coletivos e redes de meios comunitários em defesa do território, da agroecologia e da justiça social, cultural, ambiental e econômica na Amazônia;
- O reconhecimento do direito das populações de decidir sobre o projeto de desenvolvimento para a região, centrado no respeito ao ser humano e ao ecossistema que possibilita a vida para todos os seres e não no lucro das empresas e do capital financeiro, precisa ser garantido.
Como parte do processo de preparação do IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), que será realizado em Belo Horizonte, no período de 31 de maio a 3 de junho de 2018, e do IV Encontro Regional de Agroecologia da Amazônia, a ser realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), no período de 3 a 6 de abril de 2018, no Nordeste do Pará (regiões do Baixo Tocantins e metropolitana de Belém), os aprendizados da I CARAVANA AGROECOLÓGICA DO OESTE DO PARÁ são contribuições das organizações da região para a sua construção. Com o lema ‘AGROECOLOGIA E DEMOCRACIA: UNINDO CAMPO E CIDADE’, o IV ENA tem o objetivo de evidenciar a ação dos sujeitos políticos que praticam a Agroecologia como uma proposta de sociedade, ambiental, social, cultural e economicamente justa, com o protagonismo das mulheres, das juventudes, dos povos das florestas, das águas, dos campos e das cidades e aprofundar a conexão cidade e campo, ou seja, olhar para a cidade como território, conhecer o que significa Agroecologia “da” e “na” cidade, e ressignificar o direito à cidade.