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06/06/2024
Por: Equipe Fundo Dema
Assunto: Geral
Leitura: 5 minutos

ARTIGO >> As enchentes no Rio Grande do Sul hoje e a seca na Amazônia ontem. Dois extremos da mesma realidade.

Por Beatriz Luz*

Fotos: Arquivo Folha de São Paulo (seca) / Silvio Avila/AFP (enchente)

A população do Rio Grande do Sul está vivenciando a calamidade pública das enchentes e alagamentos. São 172 mortes, 629 mil pessoas fora de casa e 471 dos 496 municípios do estado afetados. São dezenas de vidas perdidas e milhares de pessoas com as suas vidas radicalmente alteradas, fraturadas, traumatizadas.

É necessário visibilizar todas as dimensões dos caos climático a fim de  compreendermos o terreno estruturante em que as mudanças climáticas estão inseridas. Estudos meteorológicos têm apontado que as chuvas intensas no estado acontecem devido ao encontro de muitos fenômenos que em outro momento poderiam ser considerados naturais. Os efeitos do El Nino, as frentes frias vindas do Uruguai e Argentina, as ilhas de calor no centro do Brasil e as particularidades da região contribuem para a retenção de massas de ar frio no Sul. Tudo isso combinado ao encontro com os chamados rios voadores vindos da região amazônica provocam ondas de chuvas intensas. Os rios voadores são considerados mecanismos naturais de regulação das chuvas em que as florestas tropicais desempenham um papel central na manutenção do ciclo hidrológico e no transporte da umidade das florestas para outras regiões.

Mas, nada disso pode ser lido sem considerar as mudanças no equilíbrio climático promovidas pelos setores que avançam na destruição dos bens comuns. A intensidade das chuvas, a força dos ventos, a velocidades de repetição, tudo compõe uma nova escala de consequências avassaladoras que aterrizam na vida das pessoas.

Os extremos climáticos apontam para um cenário de fome e insegurança alimentar.

Todos os extremos climáticos têm impacto direto na vida dos/as trabalhadores/as. São vidas, casas com histórias de vidas e equipamentos públicos que estão postos a perder. Aqui, ressaltamos outra dimensão de perdas de difícil recomposição: o sistemas produtivos para produção de alimentos.

No final de 2023, a região amazônica vivenciou a grande seca. Foram quilômetros do Rio Amazonas e do Rio Negro que passaram a ser caminhados ao invés de navegados. No campesinato, as consequências da seca penalizaram os sistemas produtivos que encontram-se com fortes dificuldades de recomposição.  Dentre as principais perdas produtivas, a cultura da mandioca merece destaque. São roçados apodrecidos, colheitas perdidas, reprodução de sementes interrompidas. As ondas excessivas de calor dificultam a floração de espécies como o açaí, base da alimentação de parcela expressiva da população amazônica, resultando em prejuízos enormes à economia local, entre outros problemas.

Diferente do agronegócio que investe na ultra especialização de cadeias de produção, artificializadas e dependes de insumos externos os sistemas produtivos da agricultura familiar e camponesa, dos povos e comunidades tradicionais são complexos e interligados, dependem mais do trabalho do que de qualquer outro elemento externo. A perda dos roçados de mandioca prejudica diretamente um conjunto de alimentos presentes no cotidiano dos sujeitos amazônidas: farinha, goma, tapioca, tucupi, beiju. Os componentes nutricionais do solo estão em extrema fragilidade. Os novos plantios e o trabalho não tem sido sinônimo de produção de alimentos.

No Rio Grande do Sul, a cada momento o desastre alcança mais territórios. O estado que é o maior produtor de arroz do Brasil, abastece todas as regiões com o grão e, possivelmente, terá sua entrega afetada. Nos últimos dez anos tem se acentuado o declínio da produção do arroz em virtude da pressão da soja e do milho, que avançam. Em 2023, o estado já teve a menor colheita de arroz do ultimo período.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que possui a maior produção de arroz orgânico da América Latina, também situado no estado, vivencia o alagamento dos assentamentos de reforma agrária, das estruturas de cooperativas, a perda de maquinário e do arroz que já havia sido colhido mas ainda estavam em sacas. O Movimento aponta que o prejuízo pode chegar a 10 mil toneladas de arroz orgânico. O declínio da produção afetará os trabalhadores/as rurais que mantém a sua reprodução social e econômica vinculada a terra e também todo o Brasil que depende do grão produzido na região.

As mudanças climáticas anunciam uma nova onda de êxodo rural no país e no mundo. Não que as cidades estejam protegidas, mas é que o modo de produção camponês e dos povos e comunidades tradicionais está ameaçado. São inúmeras as formas de desterritorializar historicamente praticadas no Brasil, hoje, elas estão revigoradas pelo avanço das mudanças climáticas, seja pelas falsas alternativas promovidas pelos mesmos geradores dos problemas ambientais ou pelos desastres climáticos em si. O agronegócio, a mineração, o hidro negócio e todas as frações que materializam a sua hegemonia têm avançado por contratos que imobilizam as terras dos povos, pela manutenção da concentração fundiária, pela desregulamentação ambiental, por investimentos públicos que garantem importantes condições da manutenção dos seus lucros extraordinários.

Por onde caminham as saídas.

No Pará, o governador do estado tem pautado o seu protagonismo na condução das saídas para os problemas ambientais, defendendo a suposta vocação do estado para a pecuária, a mineração e as soluções baseadas na natureza. Lidera a destinação de vultuosos investimentos para a infraestrutura logística dos mercados de commoditites, para a economia verde como tábua de salvação dos arcos da destruição e captura narrativas que anunciam a possibilidade de conciliação entre o agronegócio e a sustentabilidade ambiental. Os sistemas de produção dominantes não param em pé sem o apoio do estado, são esses mesmos que desterritorializam os povos do campo como essência do seu modelo de acumulação irrestrita. No Rio Grande do Sul, o governador não invoca o protagonismo da pauta ambiental para si e utiliza a estratégia de considerar surpresa cada novo desastre ambiental no estado.

O enfrentamento à crise climática exige confrontar as elites agrárias e suas estruturas de reprodução. É necessário um plano nacional de recomposição, reflorestamento e incentivo à produção agroecológica tendo em conta o sacrifício socioecológico vivenciado com os extremos climáticos e o fortalecimento de circuitos curtos de produção como processos que diminuem a dependência por alimentos transportados em longas distâncias.

As medidas emergenciais devem responder à altura as perdas e sofrimento social vivenciado pelo caos climático. Por outro lado, as saídas para as crises climática e ambiental que enfrentamos exigem transformações sistêmicas que perpassam necessariamente pelo direito a terra e território dos povos do campo, das águas e das florestas, pela garantia de soberania e segurança alimentar e nutricional e por um amplo processo de reforma urbana que envolva os diferentes setores populares.

*Educadora do Fundo Dema