Indígenas democratizam o acesso à saúde com ‘Remédio Bom’
Por Élida Galvão
Fundo Dema
| Pomadas, xaropes, comprimidos, garrafadas estão entre os destaques de produtos da medicina tradicional
‘Remédio Bom’ é a tradução de Pusanga Katu, dialeto indígena da língua Nheengatu que dá nome ao projeto desenvolvido pelas famílias da aldeia de Pinhel, localizada no município de Aveiro, no estado do Pará. Povos da etnia Maytapu[1], os membros da comunidade, situada em meio à Reserva Extrativista (Resex) Tapajós Arapiuns, na região do Baixo Amazonas, vivem basicamente da pesca, da criação de pequenos animais, da agricultura familiar e do cultivo de plantas medicinais nos quintais familiares.
Na área coletiva de 300 hectares em que habitam, as 30 famílias da aldeia contam com rica diversidade biológica que inclui a diversificação de animais silvestres, aquáticos, além das inúmeras espécies de aves e da grande variedade de frutíferas e essências florestais. Dessa forma, a prática da medicina tradicional é tida como um costume herdado por gerações. Com vasto conhecimento e experiência, e a partir da harmoniosa relação com a natureza, as famílias da comunidade resolveram atuar em proteção e pela garantia destes saberes.
Aproveitando a oportunidade frente ao lançamento da primeira Chamada Pública de Apoio a Projetos Socioambientais do Fundo Indígena do Xingu (FIX), lançada em 2013 pelo Fundo Dema em parceria com o Fundo Amazônia, as famílias da aldeia Maytapu, por meio da Associação Indígena Patauí de Pinhel do Povo Indígena Maytapu Aipapi, passaram a desenvolver o projeto Pusanga Katu, com o principal objetivo de resgatar e fortalecer o conhecimento da medicina tradicional, contribuindo para a valorização e preservação da vegetação nativa existente na Terra Indígena (TI) de Pinhel.
Enquanto patrimônio cultural da comunidade, a medicina exercitada a partir de matéria-prima natural leva em consideração, sobretudo, o comprometimento com a cidadania e com a natureza, estabelecendo respeito à dignidade humana, à construção coletiva e à diversidade biológica e cultural. Assim, com foco na valorização da floresta, a produção caseira de medicamentos envolve o conhecimento e o uso de ervas, raízes, folhas e cascas utilizadas para no tratamento de enfermidades.
Valorização do conhecimento
Nascida e criada na aldeia, Margareth dos Santos tem acompanhado todas as etapas do projeto desde o início. Professora de língua portuguesa e artes, na escola de ensino fundamental do município, ela sabe bem a importância de repassar a suas crianças a valorização dos costumes indígenas. “No dia da oficina, a gente convida todos e eles vão pra lá, também na produção dos remédios e quando há palestras sobre a sequência de como é feito, como se produz, quais são as plantas medicinais que compõe cada comprimido e como o projeto envolve também a questão da educação, a gente está incluindo esses outros saberes para estimular até mesmo as crianças”, diz Margaret.
| Por meio de oficinas, os/as indígenas trocaram conhecimentos e experiências sobre ao resgate dos saberes tradicionais
De acordo com a professora, a parceria com o Conselho Indígena Missionário (CIMI) possibilitou o intercâmbio de conhecimento entre seus parentes e parentas e os ensinamentos em fitoterapia compartilhados pelo Frei Amarildo Mascarenhas. Para a professora, a trajetória foi muito boa, pois os/as indígenas trocaram experiências aproveitando o conhecimento dos/das indígenas mais antigos. “Foi uma trica de experiência que está servido pra esse trabalho que estamos fazendo hoje, que é a produção de remédio a partir das plantas que já tínhamos cultivado e outras que passamos a conhecer. Se tornou um intercâmbio e um conhecimento riquíssimo”, avalia.
Perspectivas de um Bem Viver
Além da produção de medicamentos, o projeto prevê também a reforma do barracão comunitário como suporte para a exposição e comercialização dos produtos naturais, e ainda a construção de viveiro para plantação de mudas de essências medicinais. Com a etapa de produção de medicamentos concluída, os/as indígenas já geraram mais de 50 vidros de pomada, 18 litros de xarope, sem contar nas dezenas de pílulas para verme, reumatismo, inflamação na garganta e garrafadas[2] para diversos outros tipos de inflamação. Todo esse material, assim como o serviço delas, já está sendo divulgado por meio de panfletos a comunidades e aldeias vizinhas.
O projeto envolve toda a comunidade, entre mulheres, homens, jovens e idosos. Os ensinamentos são passados às crianças
“Junto a outras parentas nós trabalhamos com garrafadas, pílulas, pomadas. Até o momento a gente está tendo um bom resultado (…) A gente vende na própria comunidade e para pessoas de outras comunidades que têm informação do nosso trabalho. A nossa farmácia ainda não ficou pronta, mas nós estamos trabalhando porque pretendemos colocar nas prateleiras o que nós estamos fazendo”, relata Marilza Tuchaua, que junto a outras parentas comemora o resultado do trabalho por elas desenvolvido.
Ainda segundo Tuchaua, a produção de medicamentos envolve cerca de 100 pessoas, sem distinção de idade e gênero. “Todas as famílias da comunidade trabalham no projeto. Quando a indígena não pode trabalhar vai o esposo e pra gente isso não faz diferença”, afirma. Essa união dos parentes e parentas tem fortalecido bastante a comunidade, que pretende dar continuidade à ação que visa a democratização do acesso a saúde, levando em conta, porém, o equilíbrio com os seres e a harmonia com a natureza.
“Todos nós agradecemos ao apoio dado porque não tínhamos como dar continuidade a esse trabalho que a gente já vem desenvolvendo. O projeto veio para fortalecer, porque a partir de agora, com a finalização do projeto, nós vamos dar continuidade e o projeto trouxe uma solução para nós, que já estamos trabalhando a divulgação com panfletos, também a questão do recurso com a venda dos medicamentos e que será distribuído entre as pessoas que estão trabalhando”, finaliza a professora Margareth.
[1] Em português, Maytapu significa ‘agrupamento de muitas etnias’. Os relatos históricos dão conta de que esta etnia foi constituída pela junção de várias etnias, como Tapuia, Bulgre e Tupinambá. Foragidos de combates entre índios e portugueses, no período da Revolução Cabana (1835-1840), os indígenas se agruparam na floresta para garantir a sobrevivência. Assim, o conflito cultural foi inevitável, especialmente em relação às línguas faladas e aos costumes. Com a chegada dos jesuítas, a partir da catequização, os indígenas aprenderam a língua Nheengatu, falada até hoje por alguns indígenas da região.