Mais de 30 toneladas de alimentos são distribuídas a povos de terreiros
Em mais uma Ação de Solidariedade, o Fundo Dema atua politicamente no combate ao racismo religioso, contra a fome e em favor da agricultura familiar e da segurança alimentar e nutricional
Por Élida Galvão
O diálogo sobre o combate ao racismo ambiental, a violência contra os povos de terreiros e o desmonte de políticas públicas de combate à fome e a insegurança alimentar e nutricional no país marcaram mais uma Ação de Solidariedade por Comida de Verdade no Campo e na Cidade, realizada nesta quarta-feira (9), que distribuiu mil cestas de alimentos a povos de terreiros, em Belém (PA).
Ao todo, 20 terreiros receberam alimentos, em sua maioria agroecológicos, produzidos por agricultores e agricultoras familiares. “Esta ação não é voltada apenas para a distribuição de alimentos, denunciamos essa realidade de fome, o desmonte de políticas públicas para a garantia da segurança alimentar e nutricional da população, também o preconceito, o racismo religioso. Não podemos mais aceitar essa realidade de sucessivas violências. Os povos de terreiros cuidam das pessoas com amor e solidariedade. É preciso transformar essa realidade”, pontuou Graça Costa, presidenta do Comitê Gestor do Fundo Dema.
Com cânticos sagrados, dança, alegria a muita espiritualidade, representantes dos terreiros estiveram na sede da Escola de Samba Piratas da Batucada, no bairro da Pedreira, firmando uma corrente de resistência e generosidade formada ao longo do processo de articulação desta ação, que contou com o voluntariado de muitas mãos solidárias.
“A minha comunidade é distante do centro, em uma área rural, e nós como terreiro somos um esteio para a comunidade. Trabalhamos com ervas medicinais e, por meio de um projeto apoiado pelo Fundo Dema, resgatamos a ancestralidade em relação a essas ervas medicinais”, relata Mãe Márcia de Xangô, do Templo de Umbanda Caboclo Rompe Mato, localizado em Cotijuba, que recebe o apoio do Fundo Dema por meio do projeto Capim Santo – Plantas e Receitas de Cura. “Está sendo um trabalho muito gratificante da integração da nossa casa com a comunidade, que é 80% evangélica, mas conseguimos abraçar a comunidade, que anda junto com o terreiro fazendo a lembrança dos remédios, das receitas, das plantas. Estamos saindo de uma pandemia, onde houve a necessidade de nós como terreiro ajudarmos com medicação, alimentação e inclusão cultural, inclusive nas escolas, para que eles vejam o terreiro com outros olhos e não de forma distorcida”, complementa Mãe Márcia, cujo terreiro fora beneficiado pela Ação de Solidariedade.
Além de promover o respeito à ancestralidade negra, indígena e de todos os povos tradicionais, as experiências de resgate e valorização das identidades alimentares e curandeiras promovem o fortalecimento de uma rede de cuidadores/as que prestam serviço à comunidade a partir das práticas tradicionais de saúde, da partilha e preservação do conhecimento e ainda a defesa da biodiversidade.
Luta contra o racismo religioso
Resistindo ao preconceito, ao desrespeito e à força opressora do racismo enquanto prática estruturada na sociedade, os povos de terreiro continuam lutando arduamente contra a demonização de suas crenças, contra atos criminosos e até mesmo violências físicas e simbólicas.
De forma cada vez mais frequente os noticiários têm reverberado ofensas, linchamentos, apedrejamento aos terreiros e outros tipos de agressão sofridas por pais, mães, filhos e filhas de santo. Os problemas se aprofundam com a ausência do Estado no combate à intolerância religiosa no Brasil, aumentando o desrespeito e as violências sofridas pelas populações de religiões de matriz africana.
“Essa terra foi construída com o nosso suor, com o nosso trabalho, com o nosso esforço, nossa tradição, nossa cultura, com os nossos conhecimentos. A gente sempre troca, nunca fomos de somente absorver e sugar. A gente pegou os ensinamentos trazidos pelos nossos ancestrais e trocamos com os povos originários, trocamos com os brancos, afinal de contas a minha mãe preta dava os seios para amamentar o filho do branco. A gente sempre está disposto a se doar, mas a gente precisa que a sociedade também troque com a gente de forma equilibrada, harmônica e, acima de tudo, de forma respeitosa”, diz Bàbá Edson Catendê, do terreiro Ile Iya Omi Ase Ofa Kare.
Para Catendê, é necessário garantir os direitos em um país laico, respeitando as escolhas religiosas. Integrando um comitê pótima dentro do Conselho de Segurança Pública do Estado, que está trabalhando um Plano Estadual de Combate ao Racismo Religioso no Pará, ele considera que a participação nos espaços institucionais é fundamental para avançar na garantia dos direitos sociais, direito ao culto e à liberdade religiosa.
“Nós, povos da tradição de matriz africana, agradecemos ao Fundo Dema por essa iniciativa antirracista. A cesta básica tem uma representação simbólica porque envolve uma cadeia de alimentos mexendo às populações ribeirinhas, com os povos da floresta, os quais nós somos intimamente ligados. Comida e alimento é dignidade. Isso não é só a distribuição de cesta básica, este é um ato politizado que reconhece os povos tradicionais de matriz africana”, completa Bàbá Edson.
Relatando o acolhimento dos terreiros às comunidades durante a pandemia, Mãe Juci D’Oyá destaca que além da doar de alimentos, é preciso trabalhar uma política alimentar, fazer diálogo político com as famílias sobre a importância de um governo que se preocupe com os cidadãos brasileiros. “O primeiro lugar que as pessoas batem é no terreiro. Sabem que lá sempre vai ter alguma coisa pra se doar, um pedaço de pão, de bode, um pedaço de galinha de quintal. A gente não come, a gente se alimenta e troca energia com a ancestralidade e nesse período da pandemia, nó fizemos muito isso. É preciso fazer essa troca alimentar, dialogar o porquê as pessoas precisam de uma cesta básica, por que essas famílias estão sem alimento na mesa, que é um direito essencial. Levar o alimento às pessoas é uma responsabilidade social nossa, pótimas, mas deveria ser uma responsabilidade social dos governos”, diz a representante do Terreiro de Umbanda Casa de Mãe Herondina.
Fortalecimento da Agricultura Familiar
A demanda de alimentos durante a Ação de Solidariedade realizada pelo Fundo Dema vem incentivando maior produtividade dos agricultores e agricultoras familiares, movimentando a economia local e a geração de renda aos pequenos produtores cooperados, fortalecendo ainda redes de solidariedade e experiências coletivas nos circuitos de distribuição e comercialização.
De acordo com Luiz Antônio Brito, presidente da Cooperativa dos Produtores da Gleba Guajará-Pará (COPG), localizada no bairro do Curuçambá, em Ananindeua (PA), as ações feitas em parceria com o Fundo Dema têm beneficiado cerca de 500 produtores/as rurais, fortalecendo o trabalho coletivo em quintais produtivos e hortas comunitárias.
O quantitativo desta ação direcionada aos povos de terreiros, por exemplo, somou aproximadamente 16,5 toneladas de alimentos orgânicos e mais 15 toneladas de alimentos não perecíveis. No entanto, esta não é a primeira parceria do Fundo Dema com a cooperativa, outras ações realizadas em Belém acrescentam 15,5 toneladas de alimentos distribuídas por meio deste movimento coletivo.
“As ações realizadas com o Fundo Dema trouxeram um mundo de oportunidade para a agricultura familiar, para a nossa instituição, para os colaboradores e para todo mundo que se envolve neste trabalho. Os agricultores estão muitos feliz com esse mercado que absorve suas produções. Se fosse um trabalho que tivesse uma sequência, haveria uma transformação muito grande, porque nós sabemos que que as políticas públicas existem, mas nós não temos oportunidade de acessá-las. Quando tem uma oportunidade boa como essa, o agricultor se desenvolve e isso traz uma melhoria de vida para cada um de nós”, destaca Luiz.
Em um contexto excludente, com a dificuldade de acesso às políticas públicas de apoio à comercialização e o desmonte das mesmas, o movimento dos agricultores e agricultoras cooperados/as a partir de uma ação articulada se apresenta enquanto alternativa de enfrentamento agronegócio e sua cadeia de destruição, de fortalecimento da relação entre campo e cidade, promovendo uma perspectiva do alimento enquanto cultura, dignidade e direito humano.
De acordo com o representante da cooperativa, os benefícios se estendem à toda a comunidade por meio da circulação de renda, promovendo ainda a segurança alimentar e nutricional. “Quando o agricultor passa a ter o dinheiro, ele investe na comunidade, melhora a estrutura dele, provoca uma transformação na venda, além de promover a segurança alimentar. Aqui só utilizamos adubo orgânico”, afirma.
Segurança Alimentar e Nutricional
O retorno do Brasil ao Mapa da Fome tem provocado o aprofundamento da insegurança alimentar e nutricional no país. E com a carestia dos alimentos, os produtos ultraprocessados e transgênicos vêm protagonizando a dieta de grande parte da população.
De acordo com recente estudo publicado no American Journal of Preventive Medicine, realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo, (USP), da Fiocruz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidad de Santiago de Chile, o Brasil tem aproximadamente 57 mil mortes por ano devido ao consumo de ultraprocessados, um número maior do que o total de homicídio no país, que chega a 45,5 mil, em comparação ao mesmo período do estudo realizado em 2019.
Outra publicação científica, divulgada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), aponta que a fome tem lugar, tem cor e tem gênero. Segundo o estudo, mulheres, nortistas, moradores/as de áreas rurais e pessoas pretas e pardas são as mais afetadas pela situação de fome e mais vulneráveis à insegurança alimentar e nutricional. Combinadas, estas categorias agravam mais ainda a situação de mais 30 milhões de brasileiros e brasileiras, em situação grave de insegurança alimentar.
Considerando a importância de garantir a segurança alimentar e nutricional, hortaliças, verduras, legumes, frutas e grãos, compõem a maior parte dos alimentos distribuídos nas ações realizadas pelo Fundo Dema. Nesta ação voltada aos povos de terreiros, por exemplo, além de arroz, macarrão, açúcar, café e óleo, foram distribuídos ovos, abóbora, acerola, alface, banana, manga regional, laranja, macaxeira, batata doce, farinha de mandioca, goma de tapioca, feijão caupi, feijão verde, jambu, cariru, chicória e couve, tudo produzido de forma agroecológica, com adubação orgânica, sem o uso de agrotóxicos.
“Aqui a gente só utiliza adubo orgânico. Não há necessidade de se utilizar outro tipo de método de combate aos insetos, porque este é um cultivo protegido, é um cultivo altamente saudável, utilizando somente os resíduos da comunidade”, diz o presidente da COPG.
Confira abaixo a lista dos terreiros que integraram a Ação de Solidariedade:
Terreiro | Responsável |
Terreiro de Umbanda Casa de Mãe Herondina | Mãe Juci D’Oyá |
Templo de Oxóssi Caboclos Corre Beirada e Toya Jarina | Pai Naldo de Oxóssi |
Eira de Barbara Soeira | João da Hora |
Terreiro de Umbanda de Mina Nagô Caboclo João da Mata | Pai Sandro Sena |
Templo de Umbanda Cabloco Rompe Mato | Mãe Márcia de Xangô |
Terreiro de Mina Nagô Cabocla Joana Gunça | Pai Jaime Renan |
Casa de Mina D. João Soeiro | Mãe Glayci Chaves |
Terreiro de Mina Dois Irmãos | Yalorixá Eloisa de Badé |
Templo Rainha Bárbara e Toy Azaca | Mãe Rosa de Oyá |
Ile Iya Omi Ase Ofa Kare | Bàbá Edson Catendê |
Ilê Axé Yaba Omi | Sacerdotisa Yá Ominisàá (Mãe Nalva) |
Casa Espiritualista de Santa Maria Chão de Tupinambá | Madrinha Maria Tereza Furtado de Miranda |
Rundembo à Bamburusema | Mam’etu Muagile (Mãe Beth) |
Mina Nagô Ogum Rompe Mato | Pai Marco Antônio |
Rundembo N’Guzu Wá Mavanju Junsara | Mametu Gangamiro de Unzambi |
Terreiro de Umbanda Madrepérola | Raphael Negrão, Gabriel Rezende e Carolina Simões |
Mansu Mansumbandu Keke Neste | Mam’etu Nangetu Mam’eto Nangetu |
Terreiro de Umbanda Ogun Rompe Mato | Mãe Vanda |
Casa de Passagem Caminho da Luz, Cabocla Erundina, Cigana da Pedra e José Pelintra | Mãe Márcia Vilhena |
Terreiro Axé Kapo Shun | Mãe Ana |