Um dia para viver milhões de emoções – março e suas pulsações
Por Beatriz Luz, Graça Costa e Jaqueline Santos¹
(…)
Marchar é mais do que andar
É mostrar com os pés o que dizem os sentimentos
Transformar a quietude em rebeldia
E traçar com os passos
O roteiro que nos leva à dignidade sem lamentos.
(…)
Marchamos por saber que em cada coração há uma esperança
Há uma chama despertada em cada peito
E a mesma luz é que nos faz seguir em frente
E tecer a história assim do nosso jeito.
Marchar se faz necessário
Para espantar os abutres desta estrada
E construir sem medo o amanhecer.
Pois se eternos são os sonhos
Eterna também é
A certeza de vencer
Ademar Bogo
O dia era 8 de março, às 7 horas, elas acordaram muito cedo porque tinham que organizar a saída de casa. Nesse dia, elas tinham um outro compromisso, a marcha do dia internacional de luta das mulheres no Baixo Tocantins (PA), que esse ano foi diferente.
Com as bandeiras escritas nas margens dos rios, com os cantos ensaiados nos territórios e com a mobilização espraiada por diversos municípios, mais de 600 mulheres estiveram em Marcha, em Abaetetuba, no dia 8 de março.
Vindas de oito municípios da região tocantina, elas se concentraram no trevo de Igarapé Miri. O trajeto de três quilômetros foi sendo percorrido em direção ao trevo da Colônia Velha. Ao lado das Marchantes, os caminhões e carretas passavam preenchidos de soja, gado e dendê em cada centímetro de suas carrocerias. O contraste estava dado e a contestação também.
Em cada passo dado neste trecho, nascia uma nova mulher em grito ajuntado e em esperança renascida. Elas mostravam com orgulho as faixas produzidas na noite anterior “Gostamos de flores, mas preferimos respeito”, “A nossa luta é todo dia. O território não é mercadoria”. Esta última frase ficou gravada no asfalto ao som dos gritos de Que progresso é esse?
Os grandes projetos do capital na região têm deixado marcas profundas de desigualdades e destruição dos bens comuns. São projetos de portos, ferrovias e hidrovias que buscam viabilizar o agronegócio e a mineração no território. Em razão disso, as mulheres afirmaram “Aqui não será um depósito de crimes ambientais”.
Durante a Marcha, as mulheres também deram voz àquelas que tiveram suas vidas interrompidas pelo patriarcado. Em luto e na luta, viúvas delas mesmas, o cortejo das mulheres contra o feminicidio encerrou com a fala de Lorena Pereira, moradora da Colônia Velha, mesmo local do encerramento do ato.
“São tantos os casos que não sei se já ouviram falar de mim, me chamo Lorena Matos Pereira, 27 anos, mãe de três filhos, residia aqui mesmo, na Colônia! Fui brutalmente assassinada pelo meu ex- companheiro, no dia 15 de outubro de 2015. Um ano e três meses juntos, um período marcado por xingamentos e muita violência física, quando meus familiares perguntavam pelas roxuras em meu corpo dizia que era mais uma queda, uma falta de atenção, sempre tinha uma desculpa. Terminei o relacionamento, mas ele não aceitou. Ateou fogo em minha casa, achando que eu estava dentro! Não estava, tudo queimou, não fiquei nem mesmo com documentos pessoais! Mas, numa noite, três meses depois ele voltou e deferiu-me 19 terçadadas na cabeça! E querem saber o final!? Luis dos Santos Sousa, meu assassino está por aí, nunca foi preso, continua livre! A impunidade é algo que nos assombra, nos devora por dentro!”, relatou.
Ao final do cortejo, todas gritaram “Bater em mulher é crime. Matar mulher é crime. Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim!”.
Acendeu a chama da resistência em cada uma. Toda mulher conhece outra que sofre ou sofreu violência de alguma forma. As mulheres são consideradas seres que pertencem ao outro e por isso são despossuídas delas mesmas. Seu trabalho, seu tempo, seu corpo, são apropriados pelo outro e para o outro. Vinte quatro horas por dia. A história do patriarcado é uma história de vigilância, medo e guerra contra a vida das mulheres.
O BASTA foi uníssono no dia 8 de março.
Ocupar as ruas e gritar BASTA! BOLSONARO NUNCA MAIS!
A leitura da conjuntura nos indica que, este ano, a tarefa prioritária das ruas e urnas é a derrota do governo Bolsonaro. Por isso, desde 2018, as mulheres protagonizam a rejeição a este projeto com as manifestações que entoaram o Ele Não nas ruas, após vitória da extrema direta ao governo, engrossaram as lutas e campanhas pelo Fora Bolsonaro e, agora, o tom é de Nunca Mais: Bolsonaro Nunca Mais.
Dessa forma, o lema do ato sintetizou as bandeiras de luta que estão na ordem do dia para a retomada ao patamar da democracia como ponto de partida: Pela vida das mulheres e dos territórios, Bolsonaro nunca mais!
A Pedagogia Feminista na perspectiva da Educação Popular
O ato mobilizou mais de 600 pessoas dos municípios de Barcarena, Abaetetuba, Igarapé-Miri, Cametá, Moju, Mocajuba, Acará, Bujaru, Concórdia, Tomé-Açu e Tailândia. Esta mobilização ampliada foi resultado do trabalho coletivo de mulheres que semearam a vontade em unificar as bandeiras feministas e populares em uma manifestação com dimensão territorial – do Baixo Tocantins.
Como preparação para o ato, aconteceram plenárias municipais em Barcarena, Abaetetuba, Igarapé Miri, Moju, Cametá, Tomé Açu e Mocajuba, mobilizando diversos setores do campo e da cidade, que se identificam com as lutas populares em cada município. As plenárias foram injeções de ânimo, propagação do ato e fomento do sentimento de construtoras da história de lutas das mulheres trabalhadoras da região.
Algumas organizações foram animadoras deste processo, entre elas, a Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE), o Fundo Dema, o Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade (MMCC), a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETAGRI), o Coletivo de Mulheres Contra a Maré do PSOL, o Mandato da Vereadora Madalena (PSOL – Abaetetuba) e da Vereadora Edileuza (PT – Abaetetuba)
Houve, também, uma oficina de batucada feminista e produção de faixas, realizada em parceria entre a FASE e o MST. A batucada foi multiplicada em todos os municípios que estavam representados.
A FASE, o FUNDO DEMA e a pedagogia das ruas
Dentre as manifestantes, cerca de 200 mulheres estão no foco do trabalho da FASE e do Fundo Dema na região, elas são da comunidade quilombola Raízes do Bacuri, do Quilombo Laranjituba e África, da comunidade agroextrativista do Pirocaba, do quilombo Açacu, do Território Quilombola do Médio Itacuruçá, em Abaetetuba, do Quilombo de Moju-Miri, em Moju, e mulheres do MMCC Barcarena – organização membra do Comitê Gestor do Fundo Dema em Barcarena e Abaetetuba.
A construção do ato para as mulheres destas comunidades significou um aprendizado importante da educação popular, de que só a luta muda a vida e o exercício do poder popular deve ser um horizonte sempre à vista, como considera Raissa Moraes, do Quilombo África localizado em Abaetetuba.
“Achei o ato uma experiência muito marcante para mim…lutar pela igualdade. Achei muito interessante a participação de muitos homens que estão apoiando o feminismo, que quis participar da Marcha das mulheres, porque eu quero que parem de nos matar, que parem de nos assediar, para que algum dia minhas filhas não passem por isso e por todas as mulheres que são desrespeitadas. Quero que continue acontecendo nosso movimento feminista para fortalecer outras mulheres, para que algum dia não exista mais o machismo. Eu sei que é difícil, mas nada é impossível. E a Frente Feminista do Baixo Tocantins é muito importante para nossa união, para que a gente não pare de lutar pela igualdade política, econômica e cultural. Eu sempre quis participar deste movimento e eu tive esta oportunidade e foi muito importante para mim e por ter incentivado outras mulheres a participarem também”, diz Raíssa.
A manifestação foi um marco para a construção de uma Frente Feminista no Baixo Tocantins. As mulheres firmaram o compromisso de seguir em Marcha, costurando a rede articulada do feminismo comprometido com as mudanças estruturais necessárias para que todas exerçam o direito de serem livres.
¹ Educadoras da FASE e do Fundo Dema